À primeira vista esses trabalhos sugerem mapas, impressão reforçada pelo título da série, Cartas de viagem. Mas mapas são representações de territórios, construídas a partir de observações feitas à distância, tão exatas quanto possível for, como, por exemplo, as vistas aerofotogramétricas, obtidas por câmeras fixadas em satélites ou, mais baixas e minuciosas, em aviões e helicópteros, sobrevoando a superfície como pássaros que desde sempre invejamos pela fascinante tranquilidade com que atravessam o ar sustentando-se nele.
Mas Ana Amélia Genioli não faz mapas, não descreve territórios, o que seria, talvez, simples, mas, diversamente, funda-os, cria-os por meio de lápis, pigmentos e solvente sobre papel, ou seja, compostos minerais, e lembremo-nos que lápis são minas de grafite, e um líquido que dilui ambos, que os faz fluir pelo campo branco do papel, adivinhando suas comissuras, rodeando suas escarpas e cordilheiras microscópicas, espraiando-se ao sabor da gravidade e na direção dos gestos despendidos no processo de confecção, sempre obedecendo aos apelos secretos do papel, levando-o para lá e para cá, chegando a resultados para nós imprevistos. A alusão à terra, à terra mapeada, escrutinizada, não acontece, pois, por via indireta, como se Ana Amélia estivesse de um lado e o objeto observado, uma fração de um território qualquer, um fragmento de paisagem, de outro.
A artista derrama montículos de pigmentos em pó ao passo em que vai puxando linhas, fazendo incisões irregulares, tortuosas, mais ou menos cortantes, como os rios que ao longo dos séculos vão erodindo as pedras em valas íngremes, como as cumeeiras das cadeias de montanhas, resultantes de formidáveis rachaduras de placas e impactos tectônicos acontecidos em tempos geológicos remotos. As linhas são sismógrafos das pulsões internas ao artista, realizadas sem que haja um projeto claro.
E se são assim, o que acontece com os pigmentos em pó ainda é mais radical, posto que escorrem sem que se possa controlá-los, ainda que ela possa refrear ou mudar de rumo o sentido de uma vaga líquida, ou cortá-la, por sobreposição com uma outra. A disciplina, o foco, os cuidados da artista foram compondo essas cartas de viagem nas quais também se pode ler excertos de textos com os quais elas foi se encontrando nos últimos anos, escritos de Genet, Becket, Uno, dela mesmo, todos de algum modo versando sobre a busca de um corpo peregrino, varrendo áreas e distâncias imensas sem nada a sofrear sua força vital, como uma carta cujo conteúdo despejado pela mão que empunha um lápis ou caneta, vai jogando, lembrando Genet, com o branco da folha de papel para produzir sentido.
Agnaldo Farias | 2016
Crítico de arte, curador e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanisno da Universidade de São Paulo. Ele foi curador da Representação Brasileira da 25ª Bienal de São Paulo em 2002, foi curador geral do Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, entre 1998-2000 e curador adjunto da 23ª Bienal de São Paulo. Ele é autor dos livros “As Naturezas do Artifício – Amélia Toledo (W11 Publishing, 2004); Daniel Senise – The piano factory (Andrea Jacobsen, 2003); Arte Brasileira Hoje (Publifolha, 2002), entre outros.
Travel letters and other almost liquid images
At first glance these works suggest maps, impression reinforced by the title of the series, travel letters. But maps are representations of territories, built from observations made at a distance, as accurate as possible, for example, the views aerophotogrametric obtained by cameras on satellites or lower and more detailed in airplanes and helicopters, flying the surface like birds that have always envied by the fascinating tranquility that cross the air holding on it.
But Ana Amelia Genioli does not make maps, she does not describe territories, which would be, perhaps simple, but, otherwise, she founded them, create them by pencil, pigment and solvent on paper, or mineral compounds, and let’s remember that pencils are mines of graphite, and a liquid that dilutes both, which makes them flow through the white field of the paper, guessing their commissures, surrounding its cliffs and microscopic ridges, she scatters throughout the flavor of gravity and in the direction of spent gestures in the process of making, always obeying the secret appeal of the paper, taking it to and fro, reaching results unexpected for us. The allusion to land, the mapped land, scrutinized, does not happen by indirect means, as Ana Amelia was on one side and the observed object, a fraction of a any territory, a landscape fragment on the other.
Through mounds of diluted pigments, the repeated movement of printing monotype creates lines, causing irregular incisions, tortuous, more or less sharp, like the rivers over the centuries erode the rocks on steep ditches, like the ridges of chains mountains, resulting of formidable cracks plates and tectonic impacts that took place in remote geological times. The lines are seismographs of internal pulsions to the artist, performed without a clear project.
And if they are so, what happens to the powder pigment is even more radical, since run down without being able to control them, even though she can restrain or change direction of a liquid spot, or cut it, by overlap with one another. The discipline, focus, the care of the artist were composing these travel letters in which you can also read excerpts from texts with which she has collected in recent years, the writings of Genet, Becket, Uno, from herself, all of them a dealing mode on the search for a pilgrim body, sweeping areas and great distances with nothing to repress her lifeblood, like a letter whose contents dumped by the hand that wields a pencil or pen will play, remembering Genet, with the sheet of white paper to make sense.
Agnaldo Farias | 2016
Art critic, curator and professor at Faculdade de Arquitetura e Urbanisno at Universidade de São Paulo. He was curator of the Brazilian Representation of the 25th Bienal de São Paulo in 2002, general curator of the Museum of Modern Art, Rio de Janeiro in 1998-2000 and deputy curator of the 23th Bienal de São Paulo. He is the author of the books The Natures of Artifice – Amelia Toledo (W11 Publishing, 2004); Daniel Senise – The piano factory (Andrea Jacobsen, 2003); Brazilian art today (Publifolha, 2002), among others.