des.norte: Um diálogo entre as ciências da terra e a arte
Guilherme Navarro D. Tavares

by Guilherme Navarro D. Tavares

A trajetória dos rios e a transformação das paisagens acompanham os registros e marcas no trabalho de Ana Amélia Genioli. Vê-se em des.norte movimentos fluidos que resultam da interação entre pigmentos em meio líquido e a folha de papel que lhe serve de anteparo, em contraposição a formas deliberadas. O resultado se assemelha a padrões de drenagem, como os observados em imagens aéreas, de satélite ou cartas topográficas, originados da interação entre clima, rochas e suas estruturas, formadas ao longo do tempo geológico.

Tal como nas formações rochosas, os processos de criação são registrados em macro e micro escala. Os traçados originais da artista funcionam como uma rede hidrográfica, assemelhando-se ao que na natureza seriam canais entrelaçados, associados às regiões de baixa cobertura vegetal, que resistem às condições climáticas áridas, ações antrópicas e de aporte de sedimentos grosseiros. O debater de elementos observados acima compõe o ciclo das rochas, onde a formação de cadeias montanhosas e sua redução às planícies se baseiam na dinâmica interna e externa do planeta. 

A dinâmica interna promove a subsidência e soerguimento de continentes, que aliados à água líquida dão início a um ciclo de reciclagem da crosta continental. Rios inicialmente se instalam como vales encaixados em regiões elevadas e como meandrantes em regiões planas. Analogamente, podemos investigar e compreender o percurso das partículas de pigmento no trabalho de Ana Amélia, onde a observação do detalhe das telas refletem um padrão de drenagem por vezes dendríticos, por vezes em treliça, onde incisões representariam as famílias de fraturas nas rochas, tais como em afloramentos gnáissicos. As marcas encarnam um universalismo que toma a forma, e assim como na geologia, fissuras, deformações e marcas de movimentos tectônicos de grande escala são grafados até à menor das escalas. A convergência entre as formas é fruto da técnica utilizada pela artista, que foge aos moldes tradicionais da monotipia, que usa uma placa de vidro e tintas bastante líquidas, que promovem a imprevisibilidade dos resultados, e posteriormente marcadas na folha de papel aplicada sobre a superfície.

Nos processos geológicos, a dinâmica externa têm no intemperismo e na erosão o trabalho de desconstruir e transportar rochas de um ponto a outro, reduzindo rochas a seixos, e seixos a grãos. A cada morro que se vê, sabe-se que muito foi levado, e o resto ainda será. O transporte é espontâneo e às baixadas têm-se a deposição e reconstrução das novas rochas, cujos grãos são conectados por diferentes cimentos naturais. A investigação dos registros de Ana Amélia, tais como de processos naturais, não apresentam “nenhum vestígio de um começo, nenhuma perspectiva de um fim”, e observar o trabalho passa a ser uma releitura da natureza, e vice versa, em interações de um mapa conectável à diferentes dimensões.

O impacto das sobreposições entre pigmentos e seu percurso, que remetem à causalidade entre a técnica utilizada e a repetição do processo ao longo dos anos, não reduzem a imprevisibilidade do resultado. Assim como nos processos erosivos, os agentes de transporte são registrados e apagados, num debate entre construção e desconstrução, porém diante de hiatos temporais, uma única camada registra um único tempo, uma única imagem é criada.

O núcleo da Terra, constituído essencialmente por ferro e níquel, resguarda o calor residual isolado pela crosta. Em movimento de convecção, o material incandescente forma o campo magnético terrestre. Anualmente, variações de 0,2 graus mudam a posição do norte magnético aos poucos, e a magnetização de minerais como hematita e magnetita registram em rochas a latitude de continentes ao longo da história geológica. Para os viajantes, que desde o século XII utilizavam bússolas, têm-se como guia a barra que se direciona conforme o campo magnético, e cuja extremidade aponta, por convenção, ao norte. As formas geométricas presentes no trabalho de Ana Amélia Genioli, como uma nova rosa dos ventos, é dinâmica, do mesmo modo que na natureza. Porém, de forma acelerada desconstrói a direção à que aponta, e registra, tal como magnetita num único estrato de rocha, um outro norte, dessa vez construído por escolhas, des.norte.

Guilherme Navarro D. Tavares

2020

Geólogo pelo Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo, onde realizou pesquisas voltadas ao Patrimônio Geológico. Pós-graduando pelo SENAC, com estudos de qualidade ambiental de solos, sedimentos e águas.

01-  Ciclo das rochas compreende a natureza cíclica das rochas, atualmente elucidado pelo Ciclo de Wilson, que é uma série de estágios com registros tectônicos, magmáticos e sedimentares.

02-  Subsidência processo no qual uma região (superfície da Terra) é abatido em relação ao nível do mar (uma referência).

 03- Soerguimento processo no qual uma região (superfície da Terra) é elevada em relação ao nível do mar (uma referência).

04- Crosta continental camada superior da litosfera, possui cerca de 30 km de espessura e abriga rochas ígneas, sedimentares e metamórficas de diferentes tempos na história da Terra.

05-  Meandrantes curso d’água sinuoso, caminhos sinuosos.

06- Dendríticos padrão de drenagens com ramificações irregulares que representam afluentes e subafluentes.

07- Gnáissicos rocha metamórfica, composta por minerais como quartzo e feldspato.

 08- Seixos fragmento de rocha, pedra solta.

09-  Princípio geológico (uniformitarismo) estabelecido por James Hutton (1726-1797).

 10- Hiatos lapso de tempo sem registro geológico, supressão de camadas.

 11- Núcleo da Terra domínio entre 2900 km de profundidade até o centro da Terra, com temperaturas entre 4.000 e 5.000ºC e pressão de 1,3 a 3,0 milhões de unidades atmosféricas. 

 12- Campo magnético terrestre magnetismo atribuído ao núcleo do planeta, tem seus polos próximos aos geográficos e varia de posição e intensidade com o tempo.

13- Hematita mineral acessório comum em rochas ígneas, sedimentares e metamórficas, óxido de ferro, quando riscado contra porcelana apresenta cor de traço vermelho ferrugem.

Magnetita óxido de ferro, geralmente de formato octaédrico, importante mineral no estudo do paleomagnetismo.


DES.NORTE: A DIALOGUE BETWEEN EARTH SCIENCES AND ART

Guilherme Navarro D. Tavares

The trajectory of rivers and the transformation of landscapes follow the records and marks in the work of Ana Amélia Genioli. It is seen at des.norte fluid movements that results from the interaction between pigments in liquid settings and the sheet of paper that works like a screen in contrast to deliberate forms. The result is similar to drainage patterns, such as those observed in aerial, satellite or topographic maps, originated from the interaction between climate, rocks and its structures, formed over geological time.

As in rock formations, the creation processes are recorded on a macro and micro scale. The artist’s original traces work as a hydrographic network, resembling what in nature would be interlaced channels, associated with regions of low vegetation cover, which resist arid climatic conditions, anthropic actions and coarse sediment input. The debate of the elements mentioned above makes up the rock cycle, where the formation of mountain ranges and their reduction into plains are based on the internal and external dynamics of the planet.

The internal dynamics promote the subsidence and uplift of continents, in which joined with liquid water initiate a cycle of continental crust recycling. Rivers are initially installed as valleys embedded in elevated regions and as meanders in flat regions. Similarly, we can investigate and understand the path of the pigment particles in Ana Amélia’s work, where observations of the details on the screens reflects a drainage pattern, sometimes dendritic, sometimes in lattice, where incisions would represent the families of fractures in the rocks, such as in gneissic outcrops. The marks embody a universalism that takes shape and, as in geology, fissures, deformations and marks of large-scale tectonic movements are registered to the smallest of scales. The convergence between forms is the result of the technique used by the artist, differing from traditional monotypic molds, that uses a glass plate and very liquid inks promoting the unpredictability of results, and later marked on the sheet of paper applied on the surface.

In geological processes, external dynamics have the task of weathering and erosion to deconstruct and transport rocks from one point to another, reducing rocks to pebbles and pebbles to grains. Every each hill that is seen, it is known that much has been taken and the rest will soon be gone. The transport is spontaneous, the lowlands have the deposition and reconstruction of the new rocks, whose grains are connected by different natural cements. The investigation of Ana Amélia’s records, such as natural processes, does not show “any trace of a beginning, no perspective of an end”  and observing the work becomes a reinterpretation of nature and vice versa, in interactions of a map connectable to different dimensions.

The impact of overlaps between pigments and their path, which refer to the causality between the technique used and the repetition of the process over the years, does not reduce the unpredictability of the result. As well as in erosive processes, transport agents are registered and erased, in a conflict between construction and deconstruction. However in the face of temporal gaps, a single layer registers a single time and a single image is created.

The Earth’s core, consisting essentially of iron and nickel, protects the residual heat isolated by the crust. In a convection movement, the incandescent material forms the Earth’s magnetic field. Annually, variations of 0.2 degrees change the position of the magnetic north little by little, and the magnetization of minerals such as hematite and magnetite register the latitude of continents in rocks throughout geological history. For travelers, who have used compasses since the 12th century, the bar that moves according to the magnetic field is used as a guide and its end point, by convention, points to the north. The geometric shapes present in Ana Amélia Genioli’s work, like a new compass rose, are dynamic, just as in nature. However, in an accelerated way it deconstructs the direction to which it points, and registers, just like magnetite in a single layer of rock, another north, this time built by choices, des.norte.

Guilherme Navarro D. Tavares

2020

Geologist graduated at the Institute of Geosciences of the University of São Paulo, where he conducted an undergraduate thesis focused on Geological Heritage. Postgraduate student at SENAC – studying the environmental quality of soils, sediments and waters.