Um mapa nunca é exatamente o local que está sendo mapeado. É sempre uma representação e implica necessariamente em um deslocamento.
O mapa também não pode ser concebido apenas como uma representação da fisicalidade de um espaço. Ele é sempre sígnico. Isto significa que aquilo que está sendo mapeado é um fragmento de um local determinado, mas abriga também fluxos e toda descontinuidade, incerteza e instabilidade dos sentimentos, das indagações, das narrativas e outras tantas caoticidades sígnicas que o compõem.
É disso que se trata a obra de Ana Amélia Genioli.
Em todos esses anos que a acompanho – mais de uma década – aprendi que nunca se trata apenas daquilo que aparentemente lá está, e sim, da possibilidade de explicitar as tessituras invisíveis.
O des.norte, como diz a própria artista, é uma vontade de resistir. Não é uma obra apaziguada, desgarrada da política. A sua ação mais engajada talvez seja a de conectar olho, tato e movimento de modo a despertar o corpo de quem está diante das imagens.
Tecnicamente, poderíamos dizer que são rosas dos ventos sobre monotipias. Mas não são. O que salta aos olhos é o movimento que extrapola as setas e gráficos que lá estão.
E que movimento é este que perfura as espacialidades?
As manchas com pigmentos lembram os fluídos do corpo.
Não é por acaso.
É o corpo que intensifica os processos gerando modos de agir e conhecer.
O que me parece importante nesta experiência, é que nada está isolado.
Não é apenas um local, mas o atravessamento de espacialidades.
Não é um sentimento próprio, mas um fluxo.
Nunca é só imagem. As materialidades com as quais Ana Amélia lida o tempo todo são imagens-estados-movimentos ou imagens-sentimentos-pensamentos.
Neste sentido, a representação cartográfica, nunca se restringe ao que supostamente está sendo mapeado.
Não é uma coisa mapeada, mas um fluxo de experiência.
Lugar não é apenas lugar.
Corpo não é só (um) corpo.
Isto me leva a pensar que pigmentos, gráficos e setas de certa forma são inoperantes na obra de Ana Amélia.
Eles partem de suas funções habituais, mas no processo se complexificam transformando-se em operadores de espacialidades cujas funções não estabelecem o cumprimento de tarefas dadas a priori, mas abrem novas trilhas.
É importante notar que há também muitas cidades nessas cartografias propostas por Ana Amélia.
São cidades visíveis na imaginação, uma vez que conectam a vivência de ter estado lá com emissões de possibilidades que se derramam também em nós.
Afinal, é provável que esta cartografia que emerge do projeto des.norte sirva para que a gente não se acostume.
Para que continue sendo possível perceber a potência da mudança.
Para que ainda faça sentido acreditar na força de um espaço de ressonância que dê passagem a outros acontecimentos.
Resistir, neste contexto, deixa de ser apenas uma esperança longínqua.
É um levante poético que cartografa campos de ação e dá sentidos à vida.
Christine Greiner é Professora livre-docente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, onde leciona disciplinas no curso de graduação em Artes Corporais e no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica, no qual coordena o Centro de Estudos Orientais. É autora de vários livros e ensaios sobre corpo e cultura japonesa, publicados no Brasil e no exterior, entre eles, “O Corpo, pistas para estudos indisciplinares” (Coimbra: Ed. Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012) e “Fabulaciones del cuerpo japonés y sus microactivismos” (Buenos Aires: Agência Editorial Zettel, 2019).
Cartographies to Exist
Christine Greiner
A map is never exactly the place that is being represented. It is always a representation and it necessarily implies some displacement.
A map cannot be conceived only as a representation of the physicality of a space. It’s always a sign. This means that what is being mapped is a fragment of a certain place, but it also contains flows and all the discontinuity, uncertainty and instability of feelings, questions, narratives and so many chaotic sign-related aspects that compose it.
This is what Ana Amélia Genioli’s work is about.
In all these years I have been with her – for more than a decade – I have learned that it is never just about what is apparently there, but about the possibility of making explicit invisible fabrications.
The des.norte, as the artist poses it, is a desire to resist. It is not an appeased work, detached from politics. It’s most engaged action is perhaps to connect the eye, touch and movement in order to awaken the body of those who are in front of the images.
Technically speaking, we could say that they are wind roses over monotypes. But they are not. What stands out is the movement that extrapolates the arrows and graphics that are there.
And what type of movement that drills spatialities is this?
Pigmented stains resemble body fluids.
It is not by chance.
It is the body that intensifies the processes generating forms of acting and knowing.
What seems important to me in this experience is that nothing is isolated.
It is not just a place, but the act of crossing spatialities.
It is not a feeling of its own, but a flow.
It’s never just an image. The materialities that Ana Amélia deals with all the time are images-states-movements or images-feelings-thoughts.
In this sense, cartographic representation is never restricted to what is supposedly being mapped.
It’s not something mapped, but a flow of experiences.
Place is not just place.
Body is not just (one) body.
This makes me think that pigments, graphics and arrows are somehow inoperative in Ana Amélia’s work.
They depart from their usual functions, but in the process they become more complex, operating spatialities whose functions do not establish the fulfillment of tasks given a priori, but open new paths.
It is worth pointing out that there are also many cities in these cartographies proposed by Ana Amélia.
Cities that are visible in imagination, since they connect the experience of having been there with emissions of possibilities that also spill over into us.
After all, it is likely that this cartography that emerges from the des.norte project will not let us get accustomed.
So that it remains possible to perceive the power of change.
So that it still makes sense to believe in the strength of a space of resonance that gives way to other events.
To resist, in this context, is no longer just a distant hope.
It is a poetic uprising that maps fields of action and gives meaning to life.
Christine Greiner is a Ph.D. professor at the Pontifical Catholic University of São Paulo – PUC-SP, where she teaches subjects in the undergraduate course in Body Arts, and in the Postgraduate Studies Program in Communication and Semiotics, in which she coordinates the Center for Oriental Studies. She is the author of several books and essays on body and Japanese culture, published in Brazil and abroad, “O Corpo, pistas para estudos indisciplinares” (Coimbra: Ed. Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012) and “Fabulaciones del cuerpo japonés y sus microactivismos” (Buenos Aires: Agencia Editorial Zettel, 2019), among them.