A obra da artista Ana Amélia Genioli tem sido marcada pela sutileza e pela percepção de modos particulares de ver/sentir experiências da vida. Em diferentes momentos, Ana transformou em arte punhados de terra, mensagens de amigos, o luto, imagens de cidades e pessoas sobrepostas. O seu desafio é dar materialidade a mapeamentos emocionais.
Desta vez, em Inventando Corpus, a criação tem como ponto de partida linhas desenhadas em folhas de papel. Mas nada é o que parece.
O filósofo tcheco Vilém Flusser costumava dizer que as linhas são discursos de pontos e que cada ponto é um símbolo de algo que existe. Por isso entendia que as linhas representavam o mundo ao projetá-lo sucessivamente. Esta exposição poderia ser o exemplo ideal para a sua hipótese. A matéria-prima parece a linha mas, de fato, são os deslocamentos e representações. Seriam estes discursos de mundos simbólicos? Ana trilha caminhos de indicialidades que fazem do observador um cúmplice do processo de criação, sugerindo ainda outras indagações e enigmas:
Em que medida a imagem fragmentada de um corpo ativa uma certa imunidade a toda e qualquer noção de completude e inteireza?
Quem desenha a linha: a mão ou o olho?
O que acontece quando o espaço e o tempo se transformam em experiências de descontinuidade?
Nas paisagens inventadas, o fragmento não limita ou amputa, mas aponta reentradas. A imagem que se vê exige um exercício de imaginação para que seja possível criar nexos de sentido entre a linha, os lugares fotografados e os corpos. A linha constrói a imagem mas não permanece como traço estável paralisada residualmente a partir do gesto da artista.
Usando a técnica do frottage, os desenhos migram pela folha de papel, escorrem para outra folha e finalmente pela parede criando uma cartografia de percepções. A dinâmica dessas migrações indica que o gesto não se completa no vestígio do movimento sobre a folha ou no enquadramento da imagem de algum lugar. Ao invés disso, cria espacialidades sem se aprisionar.
Não há identidades claras, nem pontos de partida ou de chegada.
Ao final, conclui-se que é justamente o gesto que não se vê que se apresenta como momento poético do pensamento e nos resgata dos nossos lugares comuns.
Christine Greiner | 2009
Professora livre-docente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, onde ministra disciplinas na graduação em Artes do Corpo, e no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica, no qual coordena o Centro de Estudos Orientais. Como curadora, foi uma das responsáveis pelas exposições Primeira Pessoa (2006), Tokyogaqui (2008), A Revolta da Carne (2009) e Corpos de Imagens Eikoh Hosoe (2014). Entre seus livros, pode-se destacar: Butô, pensamento em evolução (Escrituras, 1998), Teatro Nô e o Ocidente (Annablume, 2000), O Corpo, pistas para estudos indisciplinares (Annablume, 2005) e O Corpo em crise, novas pistas e o curto-circuito das representações (Annablume, 2010).
Inventing Corpus
The work of the artist Ana Amélia Genioli has been marked by the subtlety and by the perception of specific ways to see/feel life experiences. In different moments, Ana has transformed into art a handful of dirt, messages from friends, mourning, superposed images of the city and people. Her challenge is to provide materiality to emotional mappings. This time, in Inventing Corpus, her creation uses lines drawn on sheets of paper as a starting point. But it is not what it seems to be.The Czech philosopher Vilém Flusser who said that lines are discourses of points and each point symbolizes that something exists. For this reason he understood that lines represented the world as you project it successively.This exhibition may be an ideal example for his hypothesis. The raw material seems to be the line, but, in fact, are the displacements and representations. Would these be the discourse of symbolic worlds?Ana trails paths of indicia that make the observer an accomplice of the creation process, suggesting other questionings and enigmas: Up to what point the fragmented image of a body activates certain immunity to all and every notion of wholeness and fulfillment?Who draws the line: the hand or the eye?What happens when space and time are transformed in experiences of discontinuity?In invented landscapes, the fragment does not limit or amputate, but points to reentries. The images that are seen require an exercise of imagination so that it is possible to create nexus of meanings between the lines, the photographed places and the bodies. The line builds an image but it does not remain as a stable trace paralyzed residually from the gesture of the artist.Using the technique of frottage, the drawings migrate through the sheet of paper, flow out to another paper and finally to the wall creating a cartography of perceptions. The dynamic of these migrations indicate that the gesture does not complete itself in the vestige of the movement on the paper or in framing the image in some place. Rather, it creates spaces without imprisoning itself.There are no clear identities, no starting or arrival points.In the end, one can conclude that it is precisely the unseen gesture that is presented as the poetic moment of thought and rescues us from our ordinary places.
Christine Greiner
2009
Professor of the Department of Body Languages at PUC SP in the courses of Communication of Body Arts and in the Program of Graduation Studies in Communication and Semiotics. She is the author of several publications, such as “O Corpo em Crise”, Butô, pensamento em evolução (Escrituras, 1998), Teatro Nô e o Ocidente (Annablume, 2000), O Corpo, pistas para estudos indisciplinares (Annablume, 2005) e O Corpo em crise, novas pistas e o curto-circuito das representações (Annablume, 2010).